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[Conto] Bifurcações

by Guga on Nov.22, 2009, under

Sentou-se furiosamente frente à escrivaninha. As mãos, rápidas, buscaram uma única folha de papel e uma caneta preta que repousava junto a lápis e borrachas. E então, começou a escrever.
Estava com raiva. Muita raiva. Não sabia de que, ou de quem. Mas estava. A sentia pulsando por suas veias, indo diretamente à ponta de seus dedos, de onde saíam letras de forma cuidadosamente desenhadas: não deixaria que sua obra de arte tivesse aspecto de lixo.
Aspecto... Aparência. Ele se importava com a aparência, como se importava. Mas hoje, hoje era diferente. O cabelo encontrava-se despenteado, descuidado. Ainda usava pijamas e, pela expressão em sua face, não parecia se importar com isso. Apenas queria se livrar daquilo, de todo aquele sentimento. E que uso teria ele, senão o de produzir um bom texto? Afinal, não é assim que são produzidos? Quando a raiva, a ira ou a paixão estão ‘à flor da pele’?
Continuou escrevendo enquanto as horas passavam. O celular, ao seu lado, tentava chamar sua atenção, acendendo e apagando uma pequena luz, indicando o final da bateria. Mas nada iria tirá-lo dali. Nada.
Ouviu um barulho. Palmas, talvez, ou batidas na porta. De que adiantaria? Não iria atender.

A letra continuava seu longo percurso, por linhas e linhas, completamente impecável. Agora já não era mais uma única folha, mas duas... três.
As gotas de suor já se formavam em sua face, enquanto os olhos atentos acompanhavam rapidamente o percurso da caneta em sua mão.
Sua respiração era firme e ritmada. A cada baforada ele podia sentir a raiva se esvaíndo. Não poderia perdê-la.
Vagarosa e intensamente, as lágrimas começaram a brotar de seus olhos. Não era justo, não poderia ser. Como pôde ter se colocado em situação tão deplorável? Forçado a ver tudo, sentado, sem poder fazer nada para se proteger, proteger seus interesses? Seus sentimentos? Quanto mais pensava sobre o assunto, com mais raiva ficava. E com mais paixão escrevia. Era esse seu significado, não era? Paixão, sofrimento, dor? Pois criaria algo útil de uma coisa tão ruim. E assim continuou ao longo do dia.


Acordou com o barulho da televisão. Seus pais já deveriam estar em casa.
Os olhos se abriram devagar, enquanto apoiava os braços em sua escrivaninha e tentava se erguer. Pegara no sono, sem ao menos notar. Ali, na sua frente, estavam cerca de sete folhas, empilhadas. Pegou-as com cuidado e começou a relê-las, havia escrito um ótimo conto.
Em sua estória, um garoto caminhava por uma trilha, em uma densa floresta. À medida que andava, percebia que cada passo gerava uma conseqüência, não só para si mesmo, mas para todos aqueles que havia deixado para trás. Quando precisava mudar seu caminho, em alguma bifurcação, conseguia sentir o que causaria às pessoas que não encontraria, talvez pela mudança ou por pura vontade, e às pessoas que conheceria. E até mesmo àquelas que, em breve, desistiria de encontrar. Era difícil tomar as decisões.
Ao seu lado, por entre as árvores, ele conseguia ver as imagens de sua vida, de seu passado, e alguns ecos do futuro, sinais do que deveria ou não fazer.

Sua caminhada terminava em uma das muitas bifurcações. A sua frente, uma enorme placa trazia inscrições que ele apenas ele conhecia, mas não se lembrava de seu significado. Ou não queria lembrar.
Ali, ele sabia que teria que tomar uma decisão difícil. Não iria voltar, já não tinha como. Mas não sabia para onde ir, as conseqüências eram drásticas demais. Ele havia ido longe demais. Conseguia vê-las ao redor da trilha, deslizando feito cobras famintas pela terra úmida. No final, ele continuaria parado, esperando para ver mais e mais, cada vez mais confuso, estático.

Um suspiro final precedeu um enorme sorriso de satisfação. Em seu peito, o garoto já não sentia raiva, nem frustração, nem dor. Apenas um enorme alívio. Tinha criado um conto tão confuso quanto si mesmo, quanto seus sentimentos, sua mente. Afinal, quem conseguia entendê-lo?
Mas ainda assim, através de sua história, disse coisas que não poderia, não conseguiria dizer. Fosse por falta de oportunidade ou coragem. Disse palavras confusas e soltas. Outras que nem sequer foram escritas, mas estavam lá: presentes, firmes.
Dobrou as folhas e guardou-as em sua escrivaninha. Sabia que muitos que leriam, assim como talvez seja seu caso, meu caro leitor, não entenderiam. Mas para alguns, poucos, faria todo o sentido. E esperava que, assim como ele, seu conto também retirasse o alivio do peito de alguém.

-Fim-
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Visita ao Farol

by Anônimo on Nov.22, 2009, under

Podia ver pela janela do seu quarto a luz piscante do farol ao longe. “Por que pisca se não há mais uso nenhum?” se perguntava o garoto deitado em sua cama. Passado um tempo, o piscar da lâmpada cessou. O garoto então ficou curioso.
Sem se levantar, abriu a gaveta do criado mudo ao lado da cama e retirou uma lanterna. Era sempre bom ter uma dessas guardada ao lado da cama. Apertou uma vez o botão para acende-la e outra vez para apaga-la, sempre apontando-a para o farol. Nada aconteceu. Esperançoso o menino repetiu mais uma vez. E então o farol respondeu. Uma piscadinha rápida.
E nessa brincadeira o menino passou a noite.  Só adormeceu quando o dia já amanhecia e não podia mais ver a luz do farol.
Na noite seguinte, mal o sol se pôs e o menino já estava em sua cama, com a lanterna em mãos.  Mais uma vez o farol respondera para si. E mais uma noite em claro passara brincando de conversar com o farol.
Na terceira noite, o processo se repetiu. Tão logo o sol se pôs e o menino já estava a subir correndo as escadas de sua casa em direção a sua cama. Mas naquela noite, o farol não acendeu. O menino então, numa mescla de decepção com raiva, passou a acender e apagar furiosamente sua lanterna até que então a lâmpada queimou. Frustrado, já ia virando-se para dormir quando ouviu duas batidinhas leves em sua janela.
Correu até ela, abriu-a, mas não viu ninguém do lado de fora. Porém, no parapeito da janela havia uma pedrinha perfeitamente esférica. Enrolada a ela, havia uma fita de cetim vermelha, com os seguintes dizeres bordados em branco: “Por que não vem me visitar?”. E então o farol piscou uma vez, a primeira naquela noite.
Excitado, o garoto pegou seu roupão, vestiu seus chinelos e cautelosamente pulou para fora da janela. Agora, o farol piscava incessantemente.
Corria pelo descampado, com o orvalho da noite presente na grama molhando seus pezinhos infantis e logo depois com areia de praia grudada aos mesmos.
Foi então que o menino viu atado ao cais, um barquinho de pequeno porte cheio de balões de festa vermelho. Balançava suavemente sob as ondas calmas do mar. Correu até ele e tão logo pode, entrou e desatou a corda. O barquinho então imediatamente começou a deslocar-se em direção ao farol que agora piscava de forma quase frenética.
O barquinho obedientemente encostou-se a beira do farol e o menino então pulou para fora. A porta estava aberta. Entrou correndo e sem perder o ritmo subiu as escadas em espiral que levavam a ponta do farol. Era uma escada longa e íngreme, mas mesmo assim o garoto não perdera se quer uma vez o fôlego nem parara para respirar.
Por fim, chegou ao fim da escada. Havia um burburinho de vozes e risos infantis, mas antes que pudesse identificar qualquer uma das crianças uma delas entrou a sua frente e disse sorrindo:
- Bem vindo ao seu novo lar!
Foi então que percebeu que todas as crianças ali eram iguais a si. Todas com o mesmo cabelo, o mesmo roupão, o mesmo chinelo. Algumas brincavam, outras dormiam, outras folheavam gibis... Mas todas idênticas a si.
Então uma delas mais a frente se aproximou do menino e puxou-o pela mão, conduzindo-o a um interruptor.
- Sua vez de acender o farol. – disse ela.
Ao longe o menino via o barquinho voltando… e uma lanterna piscando na janela de seu quarto.
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A Encomenda

by Anônimo on Nov.22, 2009, under

Caminhava com a cabeça baixa pela calçada molhada. O casaco preto farfalhava no vento da noite e o coturno espirrava água ao passar pelas poças. A mulher a sua frente já sabia que estava sendo seguida, mas não acelerara o passo muito menos olhara para trás.  Estudara tempo o suficiente aquela mulher para saber que na verdade ele estava sendo conduzido para uma armadilha. Apressou o passo e alcançou a mulher, caminhando ao lado da mesma.
            - Então finalmente me alcançou?- disse ela tranquilamente, mas sem olhar para o homem ao seu lado. – Sabia que eu posso muito bem começar a gritar no meio dessa gente toda e simular um assalto não é mesmo?
            - Sim. E também sei que não o faria.
            - Por que mesmo?
            - Porque do mesmo modo que estou perseguindo você, você está me levando para uma emboscada. Você tem dívidas com pessoas que não acham minha companhia bem vinda e eu sou o seu pagamento.
            - Investigou tudo muito bem não?
            - Esse é meu ganha pão.
            - Mentira- disse ela por fim parando e olhando para o rosto do rapaz a sua frente. – Você é um assassino de aluguel. Investigar é apenas uma parte disso.
            - Perspicaz de sua parte.
            - E então? Já sabe como vai dar cabo de mim? – perguntou a moça sorridente.
            O homem a fitou por um momento. Logo depois sorriu também.
            - Mas é claro.
            Antes que a moça pudesse esboçar qualquer reação de fuga, o homem levantou as mãos para o alto. Ela permaneceu imóvel, olhando horrorizada para o assassino a sua frente. Sua íris havia se tornado de um âmbar vívido e brilhante.
            Por fim o homem baixou as mãos sorrindo para ela.
            - Olhe a sua volta. – disse tranquilamente.
            Lentamente ela viu. Tudo estava paralisado. Todas as pessoas estavam congeladas. O relógio da grande igreja também havia parado de funcionar.  As nuvens no céu que estavam a encobrir a lua pararam de se mover. O balão que a criança havia acabado de deixar escapar estava imóvel no ar juntamente com o impulso que o garoto dera para tentar alcançá-lo. Tudo estava imóvel e silencioso.
            - O que você fez...? –disse ela com a voz fraca.
            Ele sorriu brevemente, misterioso. Os olhos continuavam a lampejar.
            -Você acha que sou famoso em meu ramo por quê? Você acha que eu nunca falhei por quê?
            A mulher a sua frente estava perplexa. Seu rosto, antes bonito e misterioso, agora era sem graça e lívido. Havia perdido todo seu charme e imponência.
            - Se vai cumprir seu serviço ande logo. – disse ela por fim.
            O assassino olhou surpreso.
            - Você é a primeira que não tenta fugir.
            - E quem disse que eu não tentaria?
            A moça então desembalou a correr em meio à multidão estática. O assassino corria atrás. Eventualmente ela esbarrava em alguma das “estatuas”, derrubando-as e que por sua vez se transformavam em um fino pó branco perolado.
            Não precisou correr muito para alcançá-la. Ele era um homem e naturalmente mais rápido que ela. Além do mais, ela corria com os cabelos soltos. E foi por eles que ele a puxou. Engatilhou a arma em sua cabeça.
            - Me desculpe moça… Mas a vida dos meus filhos depende da sua. Do contrário, passarão fome.
Com os olhos cheios de lágrimas, a mulher respondeu:
- E você acha que eu não tenho filhos? Que eu não os amo?
O homem suspirou.
- Esse é o preço que se paga por esse ofício.
Puxou o gatilho. O estampido ecoou no silêncio das ruas. A mulher despencou o sangue escorrendo do furo recém feito. Não havia sentido dor.
Deixou-a ali, caída no chão, com a expressão de piedade ainda expressa no rosto. Logo tudo voltaria ao normal e ela seria, segundo a mídia, apenas mais uma vítima de uma bala perdida no calor da violência das grandes cidades.
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[Conto] O preço de uma vida

by Guga on Nov.22, 2009, under


“Amada Liz,
Ao bruxulear da chama viva que me ilumina, escrevo-te esta carta sobre coisas que jamais soubera sobre mim e que agora lhe conto para que entendas o porquê parti.
Como sabes, nasci em uma família pobre, sem chances de crescer na vida ou de sequer ser alfabetizado. Ninguém na nossa cidade conhecia-nos ou se importava conosco. Porém, consegui superar todos os obstáculos e conquistar o luxo e o conforto que tanto desejei. Ajudei meus pais, meus filhos, e a ti, a quem tanto amei e a quem sempre fui fiel.
O que você nunca soube é que tudo que eu conquistei custou-me um preço, um preço muito caro.
Quando fiz quatorze anos, eu conheci um homem bastante inteligente. A principio eu não sabia quem ele era, mas ele sabia como me ganhar. Prometeu-me rios de dinheiro, luxo, e tudo que eu tenho agora. Tudo que eu tinha que fazer era um pacto, um acordo.
Quando o pacto foi selado, ele revelou ser Lúcifer, o anjo caído. Eu não teria como voltar atrás, e gozaria apenas de mais trinta anos de vida. Eu estava acabado.
Mas então, como ele prometera, logo eu consegui me formar em advocacia e, trabalhando pouco, consegui fama. Não tardou para que o dinheiro começasse a aparecer.
Comprei uma casa para meus pais e outra para mim. A cobiça logo me fez esquecer que um dia eu encontrara o diabo em minha vida.
Algum tempo depois eu conheci você e depois de alguns anos de namoro, finalmente nos casamos. Porém, quando nossos filhos nasceram, faltavam apenas cinco últimos anos para mim. Por isso trabalhei mais que de costume, para garantir a vocês uma vida longa e sem problemas financeiros.
Peço que não me julgue e não conte isso para ninguém. O que eu fiz foi para o bem de todos, e eu aproveitei minha vida por mais curta que ela fosse. Rogo por seu perdão...

Porém, há uma coisa com a qual você deve ter cuidado. Sobre a madeira velha do nosso sótão, há um enorme baú trancado. Jamais o abra. Hoje à noite, Belial veio para colher minha alma. Aqueles olhos vermelhos espreitando nas sombras enquanto eu andava pelo escritório.... Ele transpira maldade e crueldade. Por sorte, eu consegui prende-lo lá por meios mágicos. Se ele se libertar, destruirá toda a nossa família como prometera a mim. Consegui destruir a chave e quero que enterre o baú o mais fundo que conseguir. Por mais tentada que fique NÃO O ABRA!

Já passou tempo demais depois que Belial veio. Eles devem estar a caminho. Saiba que tudo que eu fiz foi para o bem de vocês, e saiba que eu sempre te amei.
Um beijo em seu coração
Brian.”


Ao terminar de ler, não pode conter as lágrimas que rapidamente escorreram pela sua pele morena e delicada. Não poderia acreditar que o marido tivesse feito aquilo, era muita covardia. Porém, como cristã devota, aprendera a não julgar, e não o faria com o homem de sua vida. Continuou a chorar pela falta que ele faria de agora em diante. Não queria saber de mais nada, apenas dele.


No segundo andar, a pequena Nina corria rapidamente em busca de um lugar para se esconder. Seu irmão já deveria estar contando e não havia um bom lugar que ele não conhecesse... Mas o que era aquilo ali, perto da escada? Uma pequena e brilhante chave, tão bonita...
Subiu os degraus velhos, que rangeram com o peso de seu corpo. Com certeza ele jamais a acharia ali. Apertava a chave em sua mão como se ela fosse aquilo que salvaria, e era. Avistou, escondido nas sombras, o enorme baú. Com certeza caberia ali dentro. Sem duvidas ou receio, correu para seu mais novo esconderijo...

-Fim-
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[Conto] Desvantagens

by Guga on Nov.22, 2009, under

- Espelho, espelho meu. Quem neste mundo é mais bela e sedutora do que eu? – brincou a mulher, deslizando as mãos pela fina lingerie púrpura, de frente ao enorme espelho de moldura prateada. Fernanda possuía um belo corpo, seios fartos, ventre delgado, coxas esguias. Possuía também lábios fartos e rubros, pele pálida e delicada, olhos turquesa e longos cabelos negros, que caiam como ondas em seu fino rosto.

Voltou-se de frente para o criado-mudo, de onde pegou um pequeno portarretrato de vidro, que trazia consigo a foto de um homem de cabelos castanhos, pele branca, olhos mel e um enorme e aconchegante sorriso.

-Douglas... - sussurrou a mulher, beijando a foto logo em seguida.

Douglas e ela estavam tendo um caso. Ele era casado, possuía duas filhas lindas e amigáveis, para as quais Fernanda fora apresentada como colega de trabalho.
De certa forma ela invejava a mulher dele. Ela deveria ser sua mulher, era com ela que ele deveria ter suas filhas. Seria uma mãe melhor...
Mas por outro lado, ela adorava mentir, enganar e esconder, vivendo eternamente o jogo da traição.

Passou a mão pelo cabelo, prendendo uma parte atrás da orelha. Recolocou o portarretrato no lugar e deitou-se em sua confortável cama, cobrindo-se com o enorme edredom e apagando a luz, pelo interruptor que havia ao lado da cama. Pensou um pouco mais no homem, até que cerrou os olhos e permitiu-se dormir.

---//---

Em seu sonho, ela chamava seu amado incansavelmente. Estava em uma densa floresta, à noite, e não conseguia ver nada além da escuridão, mas sabia que ele estava ali. Sua respiração era pesada, como se tivesse com uma profunda dificuldade para puxar o ar, talvez porque estivera correndo em busca de uma saída. Ainda trajava sua lingerie, e, devido a isso, todo o seu corpo tremia de frio.
Não se passou muito tempo até que ela avistasse uma pequena iluminação, vinda de alguns metros à sua frente. A luz movia-se em forma circular, como se alguém estivesse segurando-a enquanto andava. Sem pensar duas vezes, correu até ela.

Tomando todo o cuidado para não tropeçar em alguma raiz ou pisar em algum buraco, se aproximou silenciosamente, notando que a movimentação era proveniente de uma mulher que andava em círculos ao redor de alguém que estava deitado.
Por entre algumas árvores, ela viu Clara, a esposa de Douglas. Em uma das mãos, a mulher segurava uma pequena vela. Na outra, uma adaga pendia ensangüentada, manchando sua calça com o rubor do liquido.
Deitado no chão, o corpo de seu marido jazia inerte. Seus olhos vidrados estavam fixados no local onde Fernanda se encontrava, expressando a mais pura dor e medo, como se ele soubesse que ela viria. Mas sua mulher também a esperava.

Sorrindo, ela virou-se em direção a Fernanda. A raiva e o ódio estavam estampados em sua face, coisa que a amante percebeu antes de começar a correr. Quando deu por si, Clara estava atrás dela, e ambas corriam pela floresta adentro. A vela havia sido deixada para trás, abandonando tudo na escuridão, como antes. Sem enxergar nada, ela tropeçou em alguma coisa, acordando antes mesmo de se chocar com a terra úmida.

Quando abriu os olhos, estava de volta em seu quarto. A respiração ofegante demorou um pouco a estabilizar, mas agora não havia perigo. A luz da lua entrava pela fresta da janela, iluminando parte de seu rosto e de seu quarto. Ergueu a mão para acender a luz mas ela não se movimentou mais do que alguns centímetros: estava presa, amarrada à cama.

Ao lado de seu espelho, alguém riu de sua angustia. Estava parado, encoberto na mais pura escuridão, esperando que ela acordasse.

- Quem é você? – perguntou a amante, aflita.

- Tsc, tsc, tsc... Você não esperava por isso, não é? – falou uma voz feminina, ironicamente. A pessoa deu um passo à frente, abandonando as sombras e revelando-se no brilho do luar.

Era Clara. Agora, ela trajava um manto negro que descia deliciadamente até seu calcanhar, moldando e valorizando todas as belas curvas de seu corpo. Os cabelos ruivos caiam até os ombros, cobertos por um grande capuz. Mesmo sem maquiagem, o rosto da mulher era belo, isso Fernanda jamais poderia negar. Nem mesmo em uma sitação daquelas. Uma de suas mãos estava estendida ao lado do corpo, com a palma para cima. Sobre ela, um punhal se equilibrava sobrenaturalmente, sem ao menos tocar a pele de sua dona.

- Você tem ideia do que me fez passar, sua vadia asquerosa? – sussurrou a mulher, como se xingar ofendesse-a mais do que a sua rival.

Fernanda remexia-se na cama, tentando achar uma forma de se desamarrar. Seu coração batia cada vez mais rápido, como se fosse pular por sua garganta.

- Imagino que você tenha sonhado comigo, não é? – riu ela – Pela sua cara, creio que já viu o que eu fiz com meu querido marido. E sabe que você não escapará, não é?

- Vo... Você não precisa fazer isso – choramingou a amante, com medo – P... Por favor, me deixe ir, eu te imploro.

- Mas é claro que não. Você tem idéia do que eu fiz? Eu tirei-o da lama, eu dei a vida que ele sempre quis. Através de mim ele subiu na vida, conquistou dinheiro e fama. E então ele acha que eu nunca saberia se ele me traísse com qualquer vadia? E VOCE DESTRUIU TUDO! –gritou, fazendo o punhal girar cada vez mais rápido em sua mão – Ah, mas tudo ai acabar agora. Vai sim.

Fernanda encarava o punhal, aterrorizada. Era impossível que ele estivesse ali, flutuando. Mas a mulher iria matá-la com ele, disso tinha quase certeza. Ela nunca conhecera Clara, mas sabia como a mulher era insistente e segura de si. Nunca ninguém jamais deveria ter cruzado seu caminho, até que ela o fez.
.

- Você acha mesmo que eu vou vir aqui e te esfaquear? Para que as suspeitas recaiam sobre o meu marido, agora morto, e de quem você, gentilmente, mantém uma fotografia? Acha que eu seria tão estúpida? Eu tenho uma idéia melhor... – disse ela, como se lesse os pensamentos da amante.

A mulher encarou o punhal por um momento, enquanto Fernanda tentava soltar-se das amarras, sem tirar os olhos de Clara. O objeto pareceu derreter, ficando cada vez mais flexível. Em sua base, uma cabeça começou a se formar, dando origem a uma enorme mamba negra, que rapidamente se enroscou no braço de sua dona, fazendo-a sorrir maleficamente.

Ao ver a serpente, a amante se desesperou. Lembrou-se de quando era criança, quando uma cobra a atacara, resultando em uma crise de pânico que a fez temer esses seres por toda a vida. As lagrimas escorriam de seus olhos, enquanto suplicava por perdão.
Clara caminhou até a cama, depositando a cobra aos pés de sua rival, ignorando seus gritos e suas súplicas. Depois, dirigiu-se ao criado mudo, de onde pegou o portarretrato e guardou-o em um dos bolsos de seu manto. Feito isso, despediu-se de Fernanda com um breve beijo em seus lábios.

- Agora você vai aprender que ser uma amante também tem suas desvantagens – disse ela, enquanto caminhada de volta a escuridão, desaparecendo logo em seguida.
O desespero de Fernanda logo fez com que a cobra a considerasse uma ameaça, atacando-a em sua coxa.
Enquanto o veneno se espalhava rapidamente por seu corpo, Fernanda pode senti-lo atravessar veias e artérias. Tentou mais uma vez se soltar, acarretando em mais uma mordida. Sozinha, a única coisa que conseguiu fazer foi se lamentar, enquanto sua vida a abandonava. Mas era tarde, muito tarde.


-Fim-
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[Conto] Ultimo dia de um anjo.

by Guga on Nov.22, 2009, under

- Gu, gu, gu...
Os passinhos curtos e delicados atravessavam o parque sem qualquer pretensão ou firmeza. Nas mãos, uma pequena bolinha azul era segurada com força e compaixão. Seu brinquedo favorito.
Um, dois, três... Cada pequeno passo era uma enorme conquista. Com apenas um ano e meio, os pais já o levavam ao parque para brincar. Toda vez que os pequenos sapatos azuis tocavam o chão, as bochechas rosadas se comprimiam em um enorme sorriso, expondo os primeiros dentinhos de leite, que ainda estavam nascendo. Os olhos azuis e agitados mostravam o quão fascinado era o bebê pelo mundo.
Próximos dali, um homem e uma mulher divertiam-se juntos, sentados sobre um enorme tecido quadriculado, enquanto observavam o filho correr de um lado a outro, sem se preocupar com a sua segurança. Afinal, não havia perigo algum.
O ambiente era tranqüilo e estável. As arvores projetavam suas enormes copas sobre o local, protegendo todos do sol escaldante do verão. A relva crescia rapidamente, tornando o solo macio e perfeito para um piquenique ou um passeio.


Um passo em falso, sobre uma raiz tabular, fez com que o bebê perdesse o equilíbrio e caísse. As mãozinhas foram de encontro ao chão, soltando a bola que rapidamente rolou para o outro lado da rua.
Os pais, distraídos em seu momento romântico, não perceberam quando a criança caiu, muito menos quando ela começou a se afastar.
Rapidamente, o bebê se levantou e pôs-se a correr atrás da bolinha, que rolava rapidamente para longe do mesmo, quase como se fosse viva o suficiente para fugir.
- Gu, gu, gu – reclamava ele para ela, na esperança que ela ouvisse-o e parasse. Mas nada disso adiantou. Ela rolou, atravessando o parque e a rua, indo escorar-se no meio fio, ao lado de um bueiro.
O bebê correu, sorrindo, em busca de sua bola, sem dar importância ao trafego. Ali, carros passavam correndo, sem mostrar a menor importância com os pedestres.
Um barulho estridente chamou atenção dos pais, que só assim notaram a ausência de seu filho.

Mas já era tarde. Logo a frente do parque uma poça de sangue ao lado de um pequeno sapatinho azul avisava-os do pior. Nada mais poderia ser feito.

Mais tarde, a mulher acusará o marido pelo que aconteceu. Ao invés de aceitar, ela preferirá brigar e acusar. O homem, por sua vez, pedirá o divórcio. Pode ser que comece a beber, envenenado pelas palavras da mulher, tornando-se um alcoólatra. A mãe, tomada de dor, tentará o suicídio, que, se for impedido, resultará em um surto psicótico que irá aprisioná-la em um hospício. E assim o destino e a culpa acabarão com mais uma família.

Mas não hoje, nem amanhã. Pois agora, o bebê começou a chorar. O pai acordará assustado de seu pesadelo e, com ele, aprenderá que com anjos, nenhum cuidado é suficiente.

-Fim-
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[conto] A Decisão

by Guga on Nov.22, 2009, under

Estava parado. O ar frio do inverno rasgava os ares do enorme precipício, congelando sua face e desgrenhando seus curtos cabelos loiros.
As roupas se agitavam ferozmente com a ventania, enquanto os pés descalços sentiam a delicada relva chacoalhar, quase como em harmonia com seus trajes.
Os olhos azuis rumavam abaixo, onde o mar avançava ferozmente sobre as rochas escuras e pontiagudas, deixando o ar com a leve umidade das áreas costeiras.
Ouviu quando algo passou voando, rasante, ao lado de suas pernas. Virou o rosto para trás a espera de encontrar o responsável por tal ato, uma gaivota ou um gavião talvez, afinal, são tão comuns em tal área; mas não havia nada além do enorme salgueiro que repousava logo atrás de seu corpo.
Quando voltou sua atenção ao mar, um estranho ser pairava logo a sua frente.
Vestia um longo tecido negro e surrado. Às suas costas, duas enormes asas negras movimentavam-se levemente, mantendo-o parado no sobre o ar. Possuía pele branca como a neve que repousava em algumas partes do campo, embora essa ainda portasse alguns traços alaranjados do amanhecer. Como o garoto, estava descalço, talvez porque não precisava de sapatos, visto que seus pés pareciam jamais terem tocado o chão.
O anjo sorriu. Um sorriso frio que estava acompanhado de seus dois olhos brancos, sem íris ou pupila, como duas pérolas. Sua mão estendeu-se para o jovem, que o encarava calmamente, como se já o conhecesse há algum tempo. E talvez o fizesse.
Ele fechou os olhos e estendeu sua mão para o ser. Quando sentiu o frio toque do anjo, uma lagrima escorreu de seus olhos ainda fechados, descendo quente e firme pela pele rubra, alojando-se em um dos cantos de seus lábios.
Os pés se movimentaram: um único passo, como se houvesse mais um pouco de terra a sua frente. Mas não havia. Não havia continuação, nem caminhos, nem escolhas. Tomara sua decisão há muito tempo.
Porém, o anjo segurara firme a mão do garoto. E agora partiam juntos, como iguais, para um lugar melhor e mais calmo que o mundo; deixando para trás apenas um corpo inerte que agora jazia sobre as rochas íngremes e maltratadas.

-Fim-
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